Por Tiago Ornelas
Heráclito disse que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois o homem de hoje não é mais o mesmo de ontem, nem o rio de hoje é o mesmo rio de ontem.
Cada vez que nos submetemos a uma determinada experiência, ela nos toca de maneira diferente e pessoas que são submetidas à mesma experiência são tocadas de maneira muito distintas.
O propósito da ‘Casas e Matas’ é contar histórias de pessoas reais com experiências reais e, sobretudo, mostrar como as pessoas se relacionam e são influenciadas pela vivência na Serra do Brigadeiro. Então, existem algumas histórias que estão desde o início na minha cabeça e, por isso, precisam ser contadas: a do Rayque é uma delas.
Esta coluna é escrita de São Francisco do Glória, cidade de cerca de 5 mil habitantes, próxima da Serra do Brigadeiro. Aqui em São Chico, tivemos a oportunidade de crescer e ter contato com a serra desde cedo na escola e lembro bem das primeiras visitas com o professor Elizeu de Paula, cuja admiração pelo Brigadeiro me chamou a atenção desde aquela época. Aquelas visitas plantaram sementes em várias crianças, cada uma a seu modo, mas tocou a um amigo em especial de maneira bastante diferente.
O Rayque era aquele tipo de criança que sempre amou mato e sempre parava para observar todo tipo de bicho e, portanto, crescer em volta da Serra do Brigadeiro foi um presente para ele. Hoje ele é biólogo e pesquisador apaixonado e, com toda certeza, está retribuindo com seu trabalho tudo que recebeu naquele tempo da escola. Além de tudo, antes dele ir para o Rio de Janeiro seguir sua carreira acadêmica, ele foi Diretor de Cultura aqui na cidade e foi uma das pessoas que mais defendeu a valorização dos nossos bens naturais.
A forma que aquelas experiências tocaram o Rayque foi diferente e é com muito orgulho que chamamos ele para compartilhar um pouco dessa história.
Casas e Matas: Qual é a sua primeira memória da Serra do Brigadeiro?
Rayque: Desde pequeno sempre me senti muito atraído e ligado à natureza, dotado de uma curiosidade gigante e sempre estava à procura de novas descobertas. Foi em uma destas minhas aventuras que conheci a famosa Serra do Brigadeiro e o mais interessante foi que não conheci na forma física, mas no mundo da imaginação por meio das histórias contadas pela minha avó paterna. Ouvir sobre os grandes animais que ali viviam e quão perigosos eles eram, para mim quando criança, grandes aventuras.
Casas e Matas: O que você lembra com mais carinho dessas histórias contadas pela sua avó?
R: O principal é a forma folclórica que os antigos tratavam os animais lá da serra. Pelas histórias percebo que a fauna era muito abundante naquela época, o que fazia com que os animais fossem muito avistados por quem morava lá, que era o caso da minha avó.
Então criou-se um respeito e um temor bastante místico em volta das espécies de lá, o que faz com que nas histórias os animais sejam muito maiores e fortes do que realmente são na realidade.
Lembro muito bem da história do abraço do tamanduá, da vez que minha avó dizia ter acordado a noite com os cachorros latindo e a família viu um tamanduá enorme que rondava a casa matando um cachorro com um abraço.
Contava também as histórias das onças que visitavam frequentemente a casa a noite, matavam as galinhas e arranhavam a porta, fazendo barulho e deixando marcas. Lembro bem da vez que ela me disse ter sido perseguida por uma onça e foi salva pelo pai que afastou o animal com um tição, que é um pedaço de lenha em brasa.
Então o principal é esse folclore que a vida próxima da mata acabava criando, além desse respeito e temor pelos animais da mata, o que sempre me fascinou muito.
Casas e Matas: Qual foi o seu primeiro contato direto e como você aprofundou essa relação com o lugar?
R: Eu via aquele lugar como místico, rodeado de muito mistério, de grande possibilidade de descobertas e por isso fiquei louco para conhecer a famosa Pedra do Pato. Mas foi só adolescente em uma das viagens de campo do professor de geografia que pude me conectar com aquele lugar mágico, de uma beleza e energia inigualável. Já adulto, pude fazer parte do Comitê do Circuito Turístico do Parque, que foi uma experiência grandiosa para mim.
O maior vínculo dessas experiências com a minha vida é que, sem dúvida, a serra me influenciou na escolha da minha profissão. Sempre quis conhecer e preservar os animais que ali vivem, sem dúvidas o Parque é um grande responsável por estar ocupando o lugar que hoje ocupo.
Casas e Matas: Como biólogo que conhece bem a Serra do Brigadeiro, o que te chama mais atenção no Parque?
R: A Serra do Brigadeiro é um dos últimos remanescentes da Mata Atlântica preservada no estado de Minas Gerais, lar de várias espécies ameaçadas de extinção e tem o maior macaco das Américas, o Muriqui do Norte. Várias espécies de anuros (sapos, pererecas e rãs) e roedores foram descobertos inicialmente (possuem localidade-tipo) nas matas da Serra do Brigadeiro. Foi lá, próximo à Fazenda Brigadeiro, a primeira vez que foi coletada e posteriormente descrita a espécie de roedor juliomys ossitenuis e é lar do simpático Sapo Pingo-de-Ouro (brachycephalus), endêmico da mata atlântica.
A Serra também é lar de uma diversidade enorme de mamíferos de grande porte como a onça parda, além da grande diversidade de aves que podem ser ouvidas e observadas por toda extensão do parque. Sem dúvida há muito a se descobrir, olho para aquela paisagem verdejante e logo penso que mistérios ainda guardam a majestosa Serra do Brigadeiro.
Casas e Matas: Em relação a sua experiência na gestão de cultura, como você vê a evolução dos municípios em volta do parque nesse sentido? O que você acha que podemos ter de evolução em um futuro próximo, por exemplo, nos próximos 10 anos?
R: Em relação a minha experiência, foi muito legal porque pude ver como funcionava a dinâmica e as políticas culturais. Vejo que estamos caminhando, mas é um processo de longo prazo.
Eu vivenciei essa política de turismo ecológico há cerca de oito anos. Eu sempre gosto de ser otimista, mas vejo que temos muitos entraves logísticos e sistemáticos dentro da política pra dar certo, mas acredito que em 10 anos alguns passos vão ser dados.
Precisamos, para isso, trabalhar na divulgação da serra, criar produtos turísticos e continuar melhorando a infraestrutura para atrair as pessoas. Já temos uma boa estrutura para o turista que procura este tipo de ambiente e a comunidade se unindo, a tendência é que todos tenham noção desse potencial e que cresçam juntos.
Acredito que alguns passos vão ser dados nesse período e que a gente pode se consolidar como um polo de turismo de Mata Atlântica, mas vamos depender muito das políticas públicas e de cooperação entre os municípios que fazem parte da serra.
Casas e Matas: Com relação às experiências mais pessoais, qual relação você acha que nossa amizade tem com a Serra do Brigadeiro?
R: A gente frequentou bastante as cachoeiras da serra do brigadeiro como forma de se divertir, então essas lembranças ficam gravadas. É justamente esse tipo de memória que temos que implantar nas pessoas, para que elas visitem e queiram voltar.
Sempre é muito legal quando vamos à serra, lembro com muito carinho das nossas cantorias lá e de todas as boas experiências que tivemos. Então a Serra do Brigadeiro, de forma geral, foi muito presente na minha vida tanto na área profissional de gestão, na área da biologia, quanto na minha vida pessoal que está recheada de momentos que passei lá com meus amigos.
É bem legal ter essa interação com várias áreas da minha vida. Então, pra mim, a Serra foi completa.