Por Renan Ribeiro
A preservação da área está relacionada ao amor e respeito à natureza cultivado pela família do ecólogo Ricardo Siqueira Bovendorp.
A infância marcada pelo contato com a natureza na Fazenda do Brigadeiro, onde hoje funciona a sede do Parque Estadual da Serra do Brigadeiro, foi decisiva para cultivar o amor e o respeito pela preservação ambiental no ecólogo Ricardo Siqueira Bovendorp. A relação com o local começou na década de 1970, quando o avô de Ricardo, Hegel Israel Siqueira, que na época morava e trabalhava como médico ortopedista em Belo Horizonte, decidiu comprar um terreno em uma área cercada por mata.
Conforme Ricardo, o avô trabalhava com um residente, que conhecia Araponga e o chamou para conhecer as terras. “Então, ele comprou esse terreno, que chamava Fazenda da Neblina e começou a construir uma casa em estilo rústico, como a minha avó queria.” Ele conta que a ideia do avô era construir um espaço de lazer mesmo. Não havia preocupação em produzir no terreno. “Meu avô nunca viu esse espaço como uma terra produtiva, ele tinha a intenção de fazer algo recreativo. Ele gostava muito da natureza. Ele não deixava cortar árvores, não deixava fazer intervenções”.
Ricardo ainda acrescenta que a forma como o avô lidava com a terra foi providencial para que o ambiente se recuperasse, após a exploração pelas quais ela passou ao longo dos anos. “A floresta se regenerou muito rápido. É incrível, especialmente perto da sede. Houve, desde o primeiro momento, a preocupação de preservar a natureza do entorno. Meu avô nunca produziu nada na fazenda visando o lucro”. Como em qualquer outra fazenda, Hegel tinha vacas, produzia queijo, milho, mas tudo isso era mantido no espaço para uso interno, recreativo.
Após comprar o terreno, Hegel se dedicou à construção da casa. Segundo Ricardo, o projeto não contou com trabalho de arquitetura e engenharia. “Ela foi toda planejada pelo meu avô, que faleceu há quase um ano, em 26 de março de 2022. Com a ajuda da população ele realizou toda a construção. É interessante, porque todo o material, como a pedra, por exemplo, veio da região. Toda a madeira foi tirada da área onde foi aberta a clareira para construir a casa. Foram as pessoas que moravam aqui que talharam todas as madeiras, os pisos, as colunas. Tudo foi feito com o machado, porque na época não havia serra e outros aparelhos com os quais contamos hoje. Foi tudo feito à mão pelo pessoal de Araponga e de perto da Serra.”
As boas memórias da infância de Ricardo estão por todos os lados. Momentos que dividiu com primos e irmãos. Eram sete crianças que cresceram convivendo nos períodos de férias no casarão. “O que a gente conhece de natureza foi viabilizado via meu avô construindo o casarão da fazenda. Férias a gente sempre passava lá e depois, descia para o Rio de Janeiro, para o Campo de Goytacazes, onde meu avô tinha uma casa lá também. Então, passávamos um tempo na fazenda e íamos para o campo de Goytacazes.”
Mensalmente, Hegel ia até a fazenda, para fazer o pagamento de todos os funcionários. Todas as casas que hoje se encontram dentro da área do Parque da Serra do Brigadeiro, não só a sede, mas as outras também, que foram posicionadas em pontos estratégicos, foram pensadas e construídas por ele.
“Uma casinha bem na entrada de onde hoje fica a porteira, era um ponto estratégico, porque na época,tinha muitos saqueadores de gado, passavam muitos bandidos pela estrada, para cruzar de Araponga para Carangola. Então, meu avô construiu essas casas e deixou vários funcionários da fazenda , caseiro e outros morando nesses lugares”.
Essa casa, no final da década de 1980, se transformou na casa dos pesquisadores. Com a ajuda de moradores que faziam curso superior em Viçosa, o espaço foi pouco a pouco mudando de função. Esse contato direto com os pesquisadores, foi um dos motivos que levou Ricardo a seguir a carreira que escolheu. “Eu sou Ecólogo por formação, me formei na Unesp, no campus de Rio Claro, fiz Ecologia. Fiz doutorado na Esalq da USP, em Ecologia Aplicada e Pós Doc em Ecologia também. Hoje sou Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, na Bahia, sendo professor na área de Ecologia. Então, a natureza sempre foi muito importante para mim. Eu tenho essa ligação muito grande, com certeza, por conta da fazenda e por conta da casa dos pesquisadores, daquela curiosidade”, narra Ricardo.
Estatização
A fazenda de Hegel se tornou uma área de grande importância para a biodiversidade de Araponga e região. O trabalho para iniciar o processo para que a Fazenda se tornasse um Parque começou. “Trabalho com isso hoje em dia. Pontuamos áreas de importância biológica, para que sejam protegidas. Acredito que tenha vindo desses levantamentos biológicos feitos pelos pesquisadores. Uma galera muito boa que eu conheço hoje. Eles descobriram que aquilo ali era um hotspot de biodiversidade. Começou o movimento para a proteção, estatização e criação do Parque, que se não me engano, aconteceu no final da década de 1980 e início da década de 1990 – oficialmente o parque foi criado em 27 de setembro de 1996, através do Decreto Nº 38.319. Demorou bastante tempo”.
Essa é uma história que tem muitos outros capítulos. “Enfim, eu estava até conversando com os meus avós, há pouco tempo, e dizem que o Estado nunca pagou. Pagou uma parte, mas nunca pagou o montante completo, mas isso é outra história”.
Para o professor, uma das grandes contribuições e curiosidades sobre essa trajetória é, justamente, permitir uma imersão na natureza. “Era uma área que tinha cobras venenosas. Que consideramos perigosas para crianças andarem sozinhas, mas o meu avô deixava a gente com uma bota de sete léguas, aquelas com o cano mais alto e um facão na mão. E a gente desbravava todos aqueles matos ali no entorno da casa, tínhamos gangorra no cipó. Meu avô acabou fazendo uma casa separada da sede grande, que ainda existe e, se eu não me engano, é a área de depósito, de ferramentas e outras coisas. Atrás tinha uma casinha, onde todos os primos brincavam de casinha, de cozinhar.”
Os garotos pescavam muito no lago, onde havia muitas carpas. “Nós cozinhávamos as carpas, nós íamos muito ao curral, que era a área de entretenimento do Parque lá embaixo, onde era a casa do capataz. Nós íamos tomar leite no pé da vaca, buscávamos queijo de manhã para trazer para a sede para o café da manhã; Aprendemos todos a andar a cavalo. Puxávamos tora com carro de bois para trocar os pilares do casarão que apodrecem. Tem bastante história nesses anos que vivemos ali, essa parte de imersão na natureza com certeza é a mais forte.”
Uma das primas de Ricardo, Ligia Medina, relata vivências semelhantes. Ela conta que toda ida à fazenda era como uma viagem no tempo. “ A casa, as comidas e as brincadeiras, tudo a moda antiga. Começava pela viagem em si, uma aventura cruzando montanhas e atoleiros. Depois a casa, incrível! Tinha lampião à querosene, fogão à lenha, lareira de ferro fundido e mica. Cabeça de boi nas paredes, espingardas de enfeite. A casa para mim com certeza tinha 200 anos, só pelo jeito que rugia o piso de madeira. Mesa de jantar de dez ou 12 lugares, cheia de gente em todas as refeições.”
Além das imagens e da memória muscular das atividades que realizavam na fazenda, ficou também os cheiros e sabores, que colorem a memória afetiva que a família guarda. “Café da manhã com mingau de fubá e queijo da fazenda (aquele mesmo da casca grossa e bolorenta). Leite do pé da vaca, carne de porco matado, sobremesa puxa-puxa de rapadura. Sem TV, nem vídeo game. As brincadeiras eram balançar em cipó (e cair no mato), pescar (e cair na represa), ir no curral (e cair no cocô). Ficar com a família na varanda de noite, sem luz, só com lampião e vendo mil vagalumes. Vovô contando histórias de animais fantásticos e assustadores. Tirar os tênis e colocar aquelas botinhas era o passaporte para entrar no túnel do tempo. Muito bom!” encerra Lígia.