Por Nicélio Barros
Um fato ocorrido em um determinado local que tenha mudado os hábitos, rotinas e costumes das pessoas – independente de quanto tempo tenha durado – entra para a história. É o chamado fato histórico social. Entra para o imaginário coletivo e, literalmente, torna-se o chamado fato histórico, com suas interpretações e narrativas a partir do acontecimento. Passa a ser simbólico do ponto de vista das memórias das pessoas e do lugar. Passa a ter um significado, a partir das ações em torno do ocorrido. E traz consigo a representação, pois ali – em um tempo e espaço determinados – mudou-se um determinado cotidiano.
O acidente com o avião que transportava três técnicos da Ruralminas, mais dois tripulantes, no alto da Serra do Brigadeiro, em julho de 1986, foi um destes fatos históricos. Abaixo, demonstramos como o acidente influiu no modo de vida das comunidades envolvidas naquele tempo e espaço e como o local veio a se tornar um patrimônio histórico cultural, uma vez que está na memória coletiva do lugar e nas histórias contadas e recontadas por diferentes gerações.
O Patrimônio Cultural
A “Trilha do Avião” faz parte do Inventário de Proteção do Patrimônio Cultural do Município de Miradouro. Trata-se de um Conjunto Paisagístico Natural. O processo de Inventário junto ao IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais) encontra-se publicado no documento “Miradouro – MG: ICMS Patrimônio Cultural – Exercício 2021” Belo Horizonte: MGTM, 2019, p. 79-86.
A Localização
A “Trilha do Avião” está localizada próxima à comunidade de Nossa Senhora das Dores, no distrito de Serrania do Brigadeiro, município de Miradouro. Os limites da Trilha estão inseridos na área de conservação do Parque Estadual da Serra do Brigadeiro (PESB), criado em 1996, sob responsabilidade do IEF (Instituto Estadual de Florestas).
O Histórico
A denominação “Trilha do Avião” ficou conhecida, e é assim chamada, devido ao desastre aéreo ocorrido em 21 de julho de 1986 (GAZETA DE MURIAÉ: 1986, p. 1). Conforme consta no Processo de Inventário Cultural, “Houve cinco vítimas e, durante o período de buscas e resgate, que durou cerca de quatro dias e contou com empenho das comunidades próximas, a trilha foi ampliada. No local da queda, foi erguido um memorial às vítimas, um cruzeiro com uma placa que carrega os nomes de todas as pessoas que vieram a óbito no acidente. Na inauguração do monumento, foi realizada uma missa em intenção às almas” (MIRADOURO-MG: 2019, p. 79).
Ainda segundo a citada publicação acima (p. 79), “Por muitos anos a Trilha esteve esquecida e sem uso, até que em 2003, uma funcionária do Parque, Rosimeire Andrade de Paula Parreira, empenhou-se em descobrir onde havia sido o local da queda. Baseando-se em relatos de moradores das comunidades, Rosimeire conseguiu localizar a trilha, demarca-la e inseri-la nas trilhas catalogadas do Parque, que a partir disto realizou a manutenção, abrindo a mata. Em 2017, em comemoração aos 21 anos do Parque, a trilha recebeu nova manutenção e abrigou a confraternização dos funcionários, com o intuito de que todos conhecessem o local e sua história”.
O Acidente
No dia 21 de julho de 1986, foi dado como desaparecida uma aeronave – modelo Seneca II, bimotor, prefixo PT-RCF, da empresa ABC Taxi aéreo, com sede em Uberlândia –, que transportava cinco pessoas: três técnicos da Fundação Rural Mineira Colonização e Desenvolvimento Agrário (Ruralminas) e dois tripulantes. A aeronave havia saído de Belo Horizonte com destino a Muriaé. Os destroços do avião e os corpos das cinco vítimas foram encontrados, no decorrer daquela semana (24 de julho), conforme noticiou a “Gazeta de Muriaé”, edição n° 569, em sua capa, na publicação do dia 26/07/1986, em matéria intitulada “Encontrado o Avião – Nenhum Sobrevivente”. O avião Soneca, da ABC Taxi aéreo, estava totalmente destroçado, com a parte dianteira, inteiramente carbonizada. Não houve sobreviventes. Das cinco vítimas, quatro ainda estavam presos ao aparelho pelo cinto de segurança e carbonizados. O corpo da quinta vítima estava a quatro metros da cabine.
As Vítimas
De acordo com a matéria da Gazeta de Muriaé, “dos cinco passageiros, quatro ainda estavam presos ao aparelho pelo cinto de segurança e carbonizados, sendo eles: Reinaldo Marota Machado e Milton Gabriel Dinis, Técnicos da Ruralminas, e os tripulantes Nicolas Peracini e Waldemar Antônio Evangelista. Atirado a 4 metros do avião sinistrado, foi encontrado o corpo de João Dias Carvalho, este também técnico da Ruralminas.
De acordo com o Sargento Celito – designado pelo 1º Tenente Elvino, Comandante da 76ª. Cia, da PM de Muriaé – para comandar a patrulha enviada de nossa cidade para ajudar nas buscas, foram juntados aos esforços das Policias Militares de Muriaé, Ervália, Araponga, Viçosa e Carangola, além de bombeiros civis da Universidade Federal de Viçosa e outros voluntários que durante toda a noite de quarta-feira e madrugada de quinta-feira buscaram, palmo a palmo, toda a região onde haviam pistas da passagem do avião. Finalmente, continua o sargento Celito, às 16h30m de quinta-feira, encontramos a Aeronave, onde os Sargentos João Corrêa, de Ervália, – que, por sinal, foi o primeiro a avistar o aparelho, Geraldo Ferreira, de Viçosa e Dionísio Tavares, de Muriaé, providenciaram o resgate do corpo de João Dias Carvalho, ficando as demais vítimas para serem resgatadas por especialistas do Corpo de Bombeiros.
A Administração Paulo Carvalho [Prefeito de Muriaé entre 1983-1988] também havia se mobilizado, colocando veículos e materiais à disposição para busca.
Este acidente deixa enlutada uma das mais tradicionais famílias muriaeenses, pois uma das vítimas, Reinaldo Marota, era casado com a muriaeense Maria Rita Andrade Marota, filha e neta de Aloisio Andrade e Márcia Andrade e João Acelino de Andrade, o nosso saudoso “Velho Tibúrcio”.
Os Moradores Locais, Mobilização e Memórias
Moradores das áreas rurais próximas da comunidade de Nossa Senhora das Dores, distrito de Serrania (Miradouro) e do distrito do Careço (Ervália), na região da Serra do Brigadeiro, ouviram um forte estrondo entre o final da tarde/início de noite, daquela segunda-feira, 21 de julho de 1986. “A queda do avião mudou o ritmo da vida das comunidades do entorno do Parque, que no período de buscas mobilizaram-se e participaram das equipes de busca, o que tornou o acontecimento um marco, ainda muito vivo na memória” (MIRADOURO – MG: 2019, p. 79-80).
Segundo o senhor Orestes Ferreira, morador da comunidade do Lambari, no distrito de Serrania do Brigadeiro, as mobilizações foram intensas. “Todo mundo se envolveu. Foi uma comoção. Ninguém sabia o que estava acontecendo. Já imaginou, lá nos altos da serra. Mas a barulheira foi muito grande. A gente precisava saber o que estava acontecendo. Então, as pessoas se juntaram, outros foram sozinhos e começamos a procurar. Depois foram chegando a Polícia e outras pessoas. Todo mundo se embrenhando para o mato. Aí, a gente já sabia que um avião estava desaparecido, que não tinha chegado a Muriaé. Foi muita gente que se envolveu, mobilizou todo mundo. Aí, encontraram o avião. Os corpos das pessoas, gente aqui de Muriaé. Triste. Ficou marcado na vida de todo mundo. Ninguém nunca tinha visto uma coisa dessas”.
A Trilha do Avião – Lugar de Conhecimento
A história precisa sempre ser contada e recontada. É um fato ocorrido. Como a História é a ciência da vida cotidiana, tem os seus momentos alegres e tristes. Mas, histórias são impagáveis. O seu compromisso é com o acontecimento, com a memória e interpretações construídas.
Assim, é preciso que conhecemos a “Trilha do Avião”. O manejo da Trilha, sua conservação, o acesso a ela (geográfico, ambiental, pedagógico e turístico) devem ser debatidos, convergentemente, entre o IEF-Gerência do PESB, comunidades e Municípios envolvidos (como Miradouro, Ervália, Muriaé, entre outros).
A história é um direito de todos. Uma garantia dos hábitos culturais. Quando preservação do meio ambiente e fato histórico, portanto, social, estão envolvidos, chama-se ao diálogo e creio, a partir dele, construir um arranjo que preserve todas as nuances.
Graduado e Bacharel em História pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). Mestre em História Social (Estado e Políticas Públicas) pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo). Atualmente desenvolve pesquisa de Doutorado em História Econômica (História Agrária e Ambiental) pela USP (Universidade de São Paulo. Professor de História.
Instagram: @nicelioamaralbarros